Tomei conhecimento de quem é Vange Leonel em meados de 1992 graças a música Noite Preta, que foi abertura da novela Vamp. Essa música marcou época na minha infância.
Morava em um sítio em Jambeiro, interior de SP, e quando não estava brincando com meu primo de comandos em ação, de playmobil, de descer o morrinho de skate ou deslizar no morrão com folhas de bananeira eu gostava de brincar com as meninas da família (minha irmã e minha prima). Às vezes me entretia brincando de boneca com elas, mas preferia quando colocavam os discos de vinil pra tocar. E por incrível que pareça, no meio de tantos discos da Xuxa, amávamos a trilha sonora da Vamp, principalmente por causa de Noite Preta. Lembro de ter visto a Vange cantando algumas vezes na TV, achava ela estranha, diferente, mas gostava.
Uns oito anos depois, no epicentro do furação da minha descoberta gay, dei de cara com uma foto da Vange na internet, a reconheci imediatamente, e descobri do que se tratava ao ler o texto dela: Lésbica assumidíssima e ativista feminista. Cai de amores!
Sempre que podia (e lembrava) acompanhava os textos dela. Aquelas palavras me ajudavam a ter uma visão menos melancólica e egocêntrica dos conflitos internos e familiares pelos quais eu passava. Eu me sentia mais forte por saber que havia alguém com aquela postura escrevendo e falando na mídia (mesmo que restrita). Ano passado fui vê-la num debate do Lady Fest. Paguei de tiete e até tirei foto.
E hoje vou postar um texto que acabei de ler e deu vontade de tatua-lo no corpo, consagrando essa admiração que tenho pela Vange:
Ninguém vai me ofender
[por Vange Leonel]
publicado da Revista da Folha da FSP em 2004
Sim, sou tríbade, sáfica, lésbia, lesbiana, entendida, invertida, transviada, sapatão, sapa, sapata, francha, bolacha, fanchona, paraíba masculina, mulher-macho, gay, sim senhor, machuda, macha, dyke, como dizem as americanas, ou como as mexicanas, tortillera, do tupinambá çacoãimbeguira, do latim virago e, brasileiramente falando, roçadeira, saboeira, moquetona, madrinha, pacona, do aló, do babado ou, se preferirem algo mais erudito, ginófila, andrógina, homófila, fricatrix e homossexual.
Podem me chamar de tudo isso, eu não me importo. Se me chamam de lésbica ou safista, sinto orgulho e me envaideço: a origem dos termos é nobre. Safo, a grega, foi a maior poeta lírica da antiguidade, cultuada por Platão e Ovídio e sucesso no Mediterrâneo cinco séculos antes de Cristo. Por acaso, fazia sexo com mulheres, vivia na ilha de Lesbos e, para tocar sua lira e manter as unhas curtas, inventou a palheta, a mesma que roqueiros usam para fazer gemer suas guitarras. Bons dedos e boa lábia. Por que me ofender se me chamam lésbica?
Sou entendida sim, mais em certos assuntos que em outros, por isso talvez ginófila seja apropriado, afinal, amo e admiro mulheres em geral, mesmo sendo apaixonada por apenas uma, em particular. Sapatona, adoro usar coturnos, botas e toda sorte de calçados rudes para sair às ruas, domínio tradicional do macho, terreno muito acidentado para saltos altos.
Masculina, sim, também, às vezes, quase sempre e sempre que quero. Freud falou, Jung disse, o ministro da cultura cantou e lendas e folclores antigos apontam para a origem andrógina do ser humano. Além disso, até a nona semana de gestação, fetos de ambos os sexos parecem idênticos. Se biologicamente herdamos um potencial andrógino, o casamento alquímico entre homem e mulher dentro de nós é meta para a saúde psicológica. Assim, ser chamada de machona é elogio para quem trafega livremente entre os gêneros masculino e feminino, social e historicamente cindidos.
Resumindo: ninguém conseguirá me ofender me chamando por nomes que significam apenas o meu amor por outra mulher.
3 comentários:
Amei.. Vou colocar no meu blog...
me arrepiou, perfeito!!!!
me arrepiou, perfeito!!!!
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